Esta frase dita pelo Pe. Ezequiel Ramin tem, de fato, um sentido profundamente missionário, de total entrega a Deus e à missão.
A primeira parte – “Se minha vida lhe pertence…” – revela sua vida encarnada e doada junto aos mais pobres entre os pobres. É importante destacar que essa afirmação não possui apenas um sentido físico-pessoal de vida e morte, mas, sobretudo, expressa VOCAÇÃO e MISSÃO, em um sentido amplo. Sua vida, como consagrado e ordenado, já não lhe pertencia exclusivamente: pertencia à Igreja. E, com ela, fazia-se presente em todo o mundo, intimamente ligado ao Coração de Cristo, cabeça dessa mesma Igreja.
Essa dimensão ajuda a compreender melhor o que ele nos ensina com essa afirmação de pertença: vida, morte, povo, Amazônia. Percebemos, também, a paixão de um coração missionário que, ao se encarnar em uma realidade onde a vida está ameaçada, firma um pacto com suas principais vítimas. Movido por um grande amor e (com)paixão, é capaz de ir até às últimas consequências, doando sua própria vida.
Para compreender verdadeiramente o sentido das palavras e da frase como um todo, é necessário “comungar” da vida, vocação, paixão e missão deste jovem missionário e mártir – e, sobretudo, de sua opção de vida. Eis uma bonita catequese que se completa com o testemunho que ele nos deixou.
A segunda parte da frase – “…também lhe pertence minha morte” – exige de nós uma reflexão cuidadosa, para que possamos entender o contexto em que foi pronunciada e, também, atualizá-la.
Se pensarmos na morte apenas como fim, tudo teria se encerrado naquele meio-dia de 24 de julho de 1985. Mas não foi isso que o Pe. Ezequiel quis nos deixar como legado missionário e profético. Sua fala deve ser interpretada à luz de uma análise que nos permita VER o contexto do martírio: Amazônia; década de 1980; regime político repressor da ditadura militar; intenso fluxo migratório procedente de todas as regiões do Brasil; e conflitos armados em várias partes de Rondônia.
Nesse cenário, estavam as vítimas esquecidas e invisíveis, tornadas reféns dos lobos. Pela força do Espírito – autor e protagonista da missão – os profetas se compadecem das vítimas, e estas se transformam em causa, gerando uma opção preferencial e evangélica. Essa era a opção da Igreja de Ji-Paraná, liderada pelo então bispo Dom Antonio Possamai.
Aqui está, portanto, a interpretação:
minha morte = minha CAUSA.
Perceba: a “morte” já não é mais apenas morte. Ela se transforma em causa — e essa causa é motivo de vida, missão e entrega. É força de ressurreição.
Passados 34 anos, ainda é possível experimentar o sentimento e o ardor missionário que tomaram profundamente o coração e a alma do Pe. Ezequiel, bem como as razões evangélicas de sua entrega.
A vida de Ezequiel pertence, de fato, a todas as pessoas às quais ele se doou diretamente: famílias sem terra, ameaçadas de expulsão e morte; comunidades indígenas em igual situação; e à Amazônia como um todo.
E, ainda hoje, pertence também às pessoas, comunidades e organizações sociais que comungam da fé no Crucificado-Ressuscitado e que, n’Ele, fazem memória, dando testemunho de fé na realidade concreta.
Fazem parte dessa pertença também os sinais de libertação que surgiram a partir do sangue derramado: Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Escolas Famílias Agrícolas (EFAs), o Projeto/Instituto Padre Ezequiel Ramin (IPER), associações, acampamentos, assentamentos etc.
São sinais proféticos que perpetuam o milagre das transformações sociais reais, incomodando as forças contrárias que ameaçam o bem viver.
Sua vida, nossa vida. Sua causa, nossa causa!
A opção pelos pobres e pela Amazônia é memória martirial e pascal: ontem, hoje e sempre!
José Aparecido de Oliveira
Instituto Padre Ezequiel Ramin – IPER, Rondônia.